A DEFESA NACIONAL E AS FORÇAS ARMADAS >>>
Texto elaborado pelo GREI - 2016

 

A DEFESA NACIONAL E AS FORÇAS ARMADAS

 

      ÍNDICE

 

  • Introdução.
  • A Conjuntura internacional e o Ambiente estratégico.
  • A Arquitetura da Defesa Nacional.
  • O Processo de Reforma das Forças Armadas.
  • A vertente atual da Reforma das Forças Armadas.
  • A condição militar.
  • A capacidade operacional das Forças Armadas e perspectivas.
  • Um caminho a percorrer.

 

 

A DEFESA NACIONAL E AS FORÇAS ARMADAS NA ACTUALIDADE

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos temos vindo a assistir a um conjunto de decisões, no âmbito das políticas públicas da Defesa Nacional (DN), sobre as Forças Armadas (FFAA), reconhecidamente comprometedoras da sua eficiência organizacional e altamente penalizadoras da Condição Militar (CM) e do que esta, enquanto quadro legal de referência, representa para todos os militares.

É um dever daqueles que já estiveram investidos em funções de reconhecida responsabilidade, no âmbito das FFAA, alertar para as eventuais consequências daquelas medidas que podem pôr em causa, quer o seu carácter institucional, quer as suas capacidades para cumprirem as missões constitucionais de soberania.

Consideramos que esse contributo deve ser feito não só junto da tutela política, mas também junto dos nossos concidadãos, uma vez que a responsabilidade da defesa nacional compete a todos os portugueses. Nesse entendimento, impõe-se fazer uma avaliação realista, ponderada e construtiva do quadro de transformação a que a Instituição Militar (IM) vem sendo sujeita, com particular incidência, durante a última legislatura.

Antes de avançarmos devemos salientar que as responsabilidades pela definição, condução e controlo da política de DN, e pelo funcionamento das FFAA, se encontram claramente definidas na lei. Deste modo, não existem dúvidas acerca quem concebe, quem determina, quem aconselha, quem cumpre, quem fiscaliza e quem responde perante quem.

A DN é, com efeito, uma questão de Estado, não havendo dúvidas quanto ao facto de que são as chefias militares que falam pelas FFAA em questões de natureza institucional.

Também é consensual a ideia de que, no universo do Estado e na sociedade civil, existe suficiente conhecimento para que a concetualização e execução de uma política de defesa nacional se construa e desenvolva de forma credível e ajustada aos interesses do País.

Estamos naturalmente cientes da difícil situação económica e social que se vive no País, bem como das dificuldades que se colocam na alocação dos recursos disponíveis aos vários sectores do Estado, em função das prioridades que lhe são atribuídas.

No entanto, quaisquer que sejam as decisões que venham a ser tomadas pelo Estado relativamente às FFAA ? no sentido de prosseguir a edificação do Sistema de Forças Nacional (SFN) aprovado em 2014, ou de enveredar por outro modelo -, estamos convictos de que, em um ou outro caso, será necessário preservar uma relação inequívoca entre finalidades e meios, fundamentada num processo estruturado de planeamento de defesa e de planeamento de forças.

É neste aspecto que residem algumas das preocupações que referiremos adiante.

A CONJUNTURA INTERNACIONAL E O AMBIENTE ESTRATÉGICO

Atualmente em Portugal pouco ou nada se fala sobre as origens e a real dimensão da crise que desde 2008 vem assolando a Europa, sobre os seus reflexos na União Europeia (UE), sobre o seu impacto e consequências nas respetivas instituições e sobre a matriz de valores e princípios fundacionais em que assenta este Grande Espaço, e que vêm sendo profundamente alterados e distorcidos na sua essência.

Mas também nada se ouve sobre uma outra vertente da crise que, sendo de índole mais estratégica e geopolítica, de segurança mesmo, vem subliminarmente marcando as relações da Europa com as suas áreas limítrofes, designadamente com a Rússia e a Ucrânia, com o norte de África e o Sahel, com o Mediterrâneo e o Médio Oriente, sem esquecer a China e o percurso que esta grande potência vem fazendo em direção ao Ocidente, ou, até mesmo, os movimentos migratórios.

Não nos parece que a situação possa, em si mesma, ser esquecida e, muito menos, estrategicamente negligenciada.

A realidade é que a conjuntura de hoje configura um novo ambiente estratégico, mais exigente, menos previsível, de grande conflitualidade e de grande incerteza, em que a gesticulação militar recorre a meios e processos que se tinham por ultrapassados.

Uma incerteza que resulta das características desta ?nova ordem internacional?, em que um conjunto de atores dispõe de uma inesperada liberdade de ação e afirmação política que, no passado recente, era objeto de uma regulação por uma ordem bipolar e que, hoje, o fenómeno da globalização lhes abre possibilidades e oportunidades para a promoção dos seus interesses e objectivos, quer a nível regional, quer mundial.

 

No domínio da estratégia militar, essa incerteza e este clima penalizador da estabilidade e da paz não têm conduzido a adoção de medidas cautelares, antes pelo contrário, tem-se assistido a opções que não têm em conta a dimensão e a natureza sociológica dos conflitos abertos, sejam eles de dimensão maior ou menor, ?intra ou inter? estatal.

ARQUITETURA DE DEFESA NACIONAL

No cenário traçado, será prudente não perder de vista que as unidades políticas regulam as relações na cena internacional, num quadro de legitimidade assente em normas do Direito Internacional e nas Organizações Internacionais (OI), mas também na gestão da coação, seja ela militar ou outra.

Nesse sentido, a nível interno e externo a IM e as FFAA são uma expressão do poder nacional que contribui para a segurança e que tornam visível o espírito e a determinação para a defesa do interesse nacional, devendo para tal fim serem credíveis em termos de meios humanos e de capacidades e de uma forma que seja coerente com as necessidades e a dimensão estratégica do país.

O Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) aprovado pelo XIX Governo em 2013, de que falaremos adiante, também se refere a estas matérias, embora as orientações que retira para a política de defesa não pareçam dirigidas para a resposta aos desafios, mas para extrair argumentos que legitimem o conjunto de decisões pré-estabelecidas que vêm sendo tomadas.

No caso nacional, documentos estruturantes, no domínio político e estratégico da defesa nacional, têm na realidade sido instrumentais para a condução de alterações estruturais e conjunturais nas FFAA, concretizadas segundo uma ótica essencialmente economicista, apelidadas de reformas, em que o léxico utilizado passou a ter novos significados, sendo ?reforma? sinónimo de contracção e ?modernização? indicativo de redução de capacidades.

As únicas orientações concretas daquele documento são dirigidas às FFAA ficando a sua atuação por ele balizada e por mais quatro outros documentos estruturantes, a saber, o Conceito Estratégico Militar (CEM), as Missões das FFAA, o Sistema de Forças Nacional (SFN) e o Dispositivo de forças (DIF), todos eles aprovados e em vigor desde finais de Julho de 2014.

Dos outros Ministérios, com responsabilidades em matéria de defesa nacional, não houve nenhuma reação a qualquer orientação que ali conste, nem foi percetível que tenha suscitado interesse em círculos políticos, académicos ou, até mesmo, na opinião pública.

Parece, assim, que nada de relevante transparece do novo documento, ou mais importante ainda, não cria qualquer motivação nacional para uma eventual resposta aos desafios da conjuntura estratégica actual que se enunciou.

Mais, o documento fere mesmo o princípio constitucional da hierarquia das missões das FFAA, colocando especial ênfase no emprego militar como instrumento da Política Externa do Estado e nas designadas outras Missões de Interesse Público, subalternizando a missão principal da Defesa Militar da República, a primeira missão claramente expressa no Art.º 275 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Com efeito, a Lei Fundamental e a Lei de Defesa Nacional (LDN) enumeram as missões das FFAA pela seguinte ordem: ?Defesa Militar da República?, ?Satisfação dos Compromissos Internacionais? e ?Apoio à Política Externa do Estado?, ?Apoio a Nacionais em Situações Internacionais de Crise?, ?Participação no Reforço da Segurança Interna? e, por fim, as ?Outras Missões de Interesse Público?.

Inverter esta prioridade constitucional ou privilegiar a atuação das FFAA em ações de natureza essencialmente não militar, não pode desvirtuar e comprometer as capacidades de levar por diante o cumprimento da sua missão principal.

Perante a intensificação da atividade conflitual que se verifica em várias regiões do mundo, e a que já se aludiu, a opção estratégica do Ministro da Defesa Nacional do XIX Governo foi a de cancelar a generalidade dos programas de modernização em curso nas FFAA, ao mesmo tempo que se assiste, no âmbito das missões de segurança cooperativa, a uma diminuição quer do número de missões, quer da dimensão das próprias forças, quer ainda dos seus períodos de empenhamento. Voltaremos a este assunto adiante.

No quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), embora tenha sido aprovado, na Cimeira de Glasgow, em 09 de Setembro de 2014, por unanimidade, a orientação para que os Orçamentos de Defesa nos próximos dez anos progridam à medida do crescimento do PIB para os 2% e que 20% desse orçamento seja destinado à modernização e ao reequipamento, o Ministro da Defesa Nacional afirmava, internamente, e em jeito de estímulo que: ?? as Forças Armadas, agora, sabem com o que podem contar??, porque o orçamento da Defesa se fixou em 1,1% do PIB, valor que inclui as despesas com o pessoal militar na situação de Reserva.

Embora, a nova conflitualidade e os atores internacionais que a materializam determinem, necessariamente, um processo de adaptação contínua das FFAA, quer em termos organizativos, quer no domínio dos recursos humanos, quer no dos sistemas, das armas e dos equipamentos e da sua sustentação, a verdade é que, ao longo dos últimos quarenta anos, as FFAA vêm sendo sujeitas a um processo de sucessivas reformas que não contribuíram para um desenvolvimento equilibrado e sustentável da sua capacidade operacional, atentas as missões estabelecidas, nem para a estabilidade da sua atividade corrente.

De notar que um processo desta natureza: (i) deve facultar a segurança dos meios empenhados, conferindo-lhes o treino que lhes é devido e o armamento e o equipamento adequados; (ii) deve, ainda, tornar evidente que o emprego da força militar, face à missão atribuída, tem condições para ser bem-sucedido; (iii) deve, nesse sentido, viabilizar a capacidade logística que garanta a operação e a sustentação em condições adequadas das forças no Teatro de Operações (TO) onde porventura venham a ser envolvidas; (iv) e, por fim, deve proporcionar a satisfação dos requisitos necessários à atuação integrada com forças congéneres no âmbito das Organizações e Alianças em que o País se insere.

Concomitantemente deverá ter-se presente que a segurança militar do País não dispensa uma participação ativa na segurança cooperativa e nas fronteiras diversificadas do interesse nacional.

Manda a prudência que, assim sendo, a organização militar e o reequipamento sejam conduzidos na perspectiva de que as FFAA devem dispor de condições para responderem, com êxito, aos cenários conflituais mais prováveis, sem deixar de pensar em quaisquer outros que possam emergir como mais perigosos.

De salientar que, no caso de um país com a dimensão estratégica de Portugal, se forem eliminadas capacidades militares ou, eufemisticamente ?congeladas?, dificilmente poderão ser reconstituídas em tempo oportuno e sem a alocação de recursos consideráveis.

Nessa eventualidade as vulnerabilidades seriam de vária ordem. Desde logo, implicações negativas e de monta na instrução, na manutenção, no emprego da componente militar, e até mesmo na sua liberdade de ação operacional.

No plano externo, seria de esperar inclusivamente que os processos de planeamento da ação estratégica do Estado perdessem credibilidade e de certo modo impacto, designadamente junto das OI de que Portugal faz parte.

O PROCESSO DE REFORMA DAS FORÇAS ARMADAS

Desde 25 Abril de 1974 que a IM vem passando por sucessivos processos de reforma ditados pela visão política, pelos objectivos, pelas metodologias e pelos estilos de governação de cada época, atentas as circunstâncias externas e internas e respectivas conjunturas, estando, no entanto, na sua base presente o desiderato de se proceder ao ?redimensionamento?, ?reestruturação? e ?reequipamento? das FFAA.

Nessa linha de orientação, começou por se proceder à retracção e adaptação do dispositivo e, mais tarde, à sua reestruturação, tendo em vista uma maior eficiência e rigor na distribuição dos recursos. A este propósito governamental esteve quase sempre subjacente a ideia de reduzir a dimensão e a configuração das FFAA e, consequentemente, a sua expressão financeira e orçamental.

Este extenso e prolongado período de reformas teve equívocos, resistências, pausas e presumíveis erros, mas também períodos dinâmicos de prossecução e de realização profícua. Cumpre aqui sublinhar que no decurso deste longo processo as principais decisões nem sempre tiveram em conta os princípios que devem orientar uma reforma estrutural.

No que se refere ao princípio da precaução, recorde-se a opinião, expressa há quase vinte anos por um Ministro da Defesa Nacional:

 "A reforma das Forças Armadas é incompatível com experimentalismos" e que as "decisões apressadas, pouco ponderadas ou irrefletidas podem ter consequências devastadoras, que levam anos a recuperar, sobretudo numa instituição tão sensível como são as Forças Armadas".  

Para concluir estas observações, parece interessante salientar que nas reformas efectuadas foi frequentemente prestada maior atenção às questões da organização e da administração, relegando para um plano secundário as condições necessárias ao cumprimento com razoabilidade das missões atribuídas e à eficiência e eficácia da conduta operacional.

Traçado o quadro geral dos sucessivos processos de reforma das FFAA, é altura de abordar a situação atual.

A VERTENTE ATUAL DA REFORMA DAS FORÇAS ARMADAS

As decisões tomadas no passado recente relativamente às FFAA abriram um novo ciclo de reforma que se supõe não ter precedente concetual e metodológico em etapas anteriores, dada a diversidade dos setores abrangidos e a presumível mútua interação.  

Relembre-se, entre outros processos, a limitação das competências dos Tribunais Militares e a sua extinção em tempo de paz; as revisões introduzidas no Código de Justiça Militar (CJM) e no Regulamento de Disciplina Militar (RDM); os constrangimentos na autonomia decisória dos Chefes de Estado-Maior (CEM) na condução dos Ramos, com interferência direta nas suas competências nos domínios administrativo e da gestão de pessoal e financeira; as reduções, sem racional conhecido, de efectivos e de encargos com a defesa; e as decisões no sentido de uma desvalorização da CM e especificidade castrense, com reflexos nas carreiras, na saúde, no apoio social e até mesmo nas retribuições dos militares.

Não se esqueça igualmente, o baixo grau de realização das Leis de Programação Militar (LPM) e de Programação de Infraestruturas Militares, quer pela não execução dos programas inscritos, quer pela falta de financiamento, quer ainda pela dimensão das cativações orçamentais que lhes são aplicadas.

Estas transformações vieram a culminar com a "Reforma 2020", lançada pelo XIX Governo.

Numa breve síntese, refiram-se, entre outras decisões, o cancelamento da generalidade dos programas de modernização que estavam em curso, com implicações nas capacidades, nas unidades operacionais disponíveis para a satisfação de compromissos internacionais e para o cumprimento de missões nas áreas de soberania e jurisdição nacional, incluindo os meios navais e aéreos dedicados às Regiões Autónomas.

Do mesmo modo, não foi concretizado qualquer projeto de modernização ou de reequipamento previsto na LPM até porque só muito recentemente, quase um ano depois, em Maio de 2015, é que a mesma foi aprovada.

Concorrentemente foi desarticulado o Sistema de Saúde Militar, foi alterado o estatuto administrativo das Oficinas Gerais de Material de Engenharia, foram extintas múltiplas valências da Manutenção Militar, enquanto o futuro do Arsenal do Alfeite parece incerto. Ficou por concretizar, apenas, a proposta de desmembramento das capacidades do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos.

Na mesma linha, prosseguiu a redução dos orçamentos da defesa e a diminuição dos efetivos militares que, nos últimos quinze anos, por todo perfazem valores da ordem dos 30%, embora continue por explicitar o racional dessas reduções, bem como as implicações que se esperam para o SFN em vigor, em especial, para a sua componente operacional e aí para uma adequada relação que deve sempre existir entre as designadas ?frente? e ?retaguarda?.

Fez-se perdurar, desta maneira, a ideia de que com menos era possível fazer mais, quando na realidade, no âmbito militar, com menos faz-se menos, normalmente pior, podendo dar origem a situações em que, na maioria dos casos, o erro se paga com a vida.

A CONDIÇÃO MILITAR

No que concerne aos recursos humanos, importa ainda sublinhar que a reforma já não visa apenas a diminuição dos efetivos, como vinha a suceder, mas o próprio estatuto dos militares e a sua essência. A recente alteração do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR) veio a evidenciar o propósito de obter, também, por esta via, poupanças e ganhos, sem cuidar dos efeitos negativos que daí resultam para o moral, para a coesão e, até mesmo, para o prestígio e deontologia da profissão militar.

Como é sabido muito se tem escrito a este propósito e muitos têm sido os textos, os ensaios, os artigos de opinião, os comunicados das Associações Profissionais de Militares (APM) que vêm sendo publicados, quer nos jornais de maior expansão e generalistas, quer em revistas da especialidade, de distribuição mais restrita e públicos-alvo mais segmentados e exclusivos.

O desalento e a frustração assumem-se como uma realidade explícita e impossível de escamotear no seio das FFAA, considerados os reflexos das opções feitas em matéria de grandes agregados, como são, por exemplo, os das ?carreiras?, da ?saúde?, da ?protecção social complementar dos militares e das suas famílias? e das ?remunerações?, entre outros.

Por tudo isto, fica clara a ideia de que nunca, como nos últimos anos, se tinha ido tão longe na desconstrução das FFAA, a par de um permanente desrespeito pela condição militar daqueles que nelas servem, induzindo uma acentuada e igualmente preocupante descaracterização da profissão militar.

A CAPACIDADE OPERACIONAL DAS FORÇAS ARMADAS E PERSPETIVAS

As FFAA dispõem atualmente de um núcleo reduzido de meios com valor militar credível que podem atuar autonomamente, ou integrados em forças multinacionais, em cenários ?selecionados? de razoável exigência operacional.

Essa capacidade de intervenção resulta dos esforços desenvolvidos ao longo de várias décadas, no sentido de consolidar doutrina e conceitos de emprego, de obter equipamento com potencial operacional, de criar novos sistemas de formação e treino, de desenvolver adequados sistemas de sustentação logística e de satisfazer todos os outros requisitos que se sabe serem necessários à atividade das FFAA.

No que toca ao equipamento mais antigo, hoje em dia de reduzido valor operacional e técnico, mas ainda indispensável por não ter sido substituído, tem sido possível prolongar consideravelmente o seu ciclo de vida e continuar a utilizá-lo com a racionalidade possível.

A verdade é que, no essencial, têm sido asseguradas as missões atribuídas às FFAA, a nível interno e externo, com resultados dignos e honrosos.

Não cabe aqui falar das circunstâncias em que essas missões foram preparadas e executadas, mas não pode deixar de se salientar que os resultados obtidos devem muito ao fator humano, ou seja, ao profissionalismo, à versatilidade, à abnegação e à vontade dos militares portugueses em bem servir o seu País.

Dito isto, é altura de olhar para o futuro, porque não podemos partir do princípio de que tudo vai correr da mesma forma. No plano dos recursos humanos, materiais e financeiros, é ineludível que as condições serão muito mais difíceis e presumivelmente mais penalizadoras da atividade e prontidão operacional.

No entanto, esta constatação não deve ser vista como uma fatalidade, mas como um estímulo para a procura de novas soluções e, importa dizê-lo, para recuperar outras que nunca deveriam ter sido abandonadas.

Na realidade, o desafio que se nos depara é um exercício complexo de gestão de necessidades, de interesses, e de objetivos, que só pode ser resolvido através de um rigoroso e exigente processo de planeamento de defesa nacional e de forças, que a lei prevê, mas cuja metodologia, de tipo-descendente, não é ajustada desde 1982, ano em que foi aprovada a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) e nela se consignou uma tal orientação.

Desde essa data, foram aprovadas outras versões da LDN e da Lei Orgânica de Bases de Organização das FFAA (LOBOFA), mas a metodologia de planeamento estratégico militar adotada em 1982 permaneceu inalterada, apesar de o CEDN de 2013 ter estabelecido como fundamental a implementação decisiva de uma metodologia de planeamento por capacidades.

Na prática, o que se verificou foi, uma vez mais, a prossecução, a contrario, de uma abordagem ao planeamento de defesa nacional de cariz essencialmente financeiro, em que os orçamentos comandam as opções e a materialização dos meios, ficando a sua utilização e emprego operacional dissociados da realidade estratégica do País.

Em síntese, compreendendo-se de alguma forma as razões da abordagem financeira, afigura-se, no entanto, que a mesma terá de ser ajustada em função dos desafios que decorrem da nova situação estratégica, sob pena de se acentuarem as incoerências e disfuncionalidades do SFN em vigor, da sua edificação, levantamento e sustentação.

UM CAMINHO A PERCORRER

Atento o que foi dito, afigura-se-nos de interesse elencar um conjunto de questões que justificam uma reflexão prospectiva:

Em primeiro lugar, a operacionalização da metodologia de planeamento de defesa nacional por capacidades, tal como se estabelece e determina no CEDN 2013, por ser aquela que, nas actuais circunstâncias difusas e de incerteza quanto ao tipo e natureza da ameaça melhor consegue correlacionar a capacidade com o propósito da missão, com os meios necessários para o alcançar, com a sua organização e com a vontade política de os empregar.

De notar que esta metodologia melhora, sobremaneira, o processo de planeamento e de decisão político-militar, ao tornar constante e interactiva a relação entre os fins e os meios, e entre a política e a estratégia.

Tem ainda o benefício de tornar mais transparente e melhor explicitada, a razão de ser das FFAA e a assunção política, perante o país e os portugueses, dos grandes objectivos de defesa militar.

Mais, este tipo de metodologia permite interligar com maior rigor e coerência os diversos tipos de planeamento militar: o planeamento de defesa com o planeamento de forças e com os planeamentos logístico, financeiro e, todos eles, com os orçamentos de funcionamento e de investimento das FFAA e dos Ramos.

Ao proceder deste modo, sustar-se-á de forma evidente a abordagem do tipo meramente financeira que vem sendo materializada, evitando-se, assim, a subversão do racional do SFN pela distribuição aleatória e não objectivada dos recursos financeiros disponíveis.

Acresce que esta metodologia é a que melhor possibilita relacionar o SFN e as ?necessidades organizacionais? que impõe, com os efetivos de pessoal, com a concepção e gestão dos quadros de pessoal permanente e, bem assim, com as ?necessidades individuais? dos respectivos agregados.

Finalmente, este tipo de metodologia permitirá ultrapassar os inconvenientes de uma situação em que já não é o SFN a determinar as ?necessidades organizacionais? mas antes as ?necessidades anuais? definidas, como hoje acontece, com base em critérios de natureza casuística, de ordem financeira e orçamental.

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Em segundo lugar, a recuperação do tema, pouco debatido, da capacidade de mobilização nacional.

Com a extinção do Serviço Militar Obrigatório, por via de um processo eminentemente político e fechado ao debate público, na sociedade, o País acabou por aceitar algumas vulnerabilidades ao abandonar o regime de conscrição sem alternativa consistente, e ao adoptar um sistema de voluntariado e contrato, substituiu a matriz de relação individuo-Instituição, muito marcada pelo dever e pela cidadania, por outra de natureza contratual e de interesse.

Por outro lado a depressão demográfica e a emigração de quadros só vêm acrescentar dificuldades ao estudo de soluções que permitam, em caso de necessidade, fazer crescer o núcleo de forças mínimo para níveis mais adequados com um eventual agravamento da conjuntura e do próprio ambiente estratégico que nos envolve e por isso influencia.

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Em terceiro lugar, a clarificação do dever de tutela a que estatutariamente qualquer militar está obrigado, e ao qual não se pode furtar. Esta questão justifica alguns comentários:

Desde logo, importa sublinhar a percepção, interiorizada na tradição, no uso e no costume militar, de que os CEM, no cumprimento do dever de tutela, exercem o seu magistério de influência junto do poder político, sempre que estiverem em causa problemas graves de pessoal. E, na verdade, nessas circunstâncias, os chefes militares foram geralmente ouvidos, sendo as suas intervenções, normalmente, consideradas e avaliadas.

Sucede, porém, que o poder político tem vindo a neutralizar este relevante papel dos CEM, precisamente numa altura em que a insatisfação dos militares está a crescer por razões que já foram indicadas.

Paralelamente constatam-se casos em que, na opinião pública, se cria a ideia de que os CEM aprovaram ou concordaram com determinadas decisões, quando a realidade nem sempre é essa, algumas vezes, até mesmo, o seu contrário. Estes casos minam a confiança dos militares nas instituições, porventura, nem sempre com razão, nas próprias chefias militares, sendo portanto de evitar, embora, na realidade os direitos que lhes assistem, ao virem sendo sistematicamente coartados, possam ajudar a compreender a sua atitude.

A propósito será de precisar que as responsabilidades dos CEM relativamente aos seus subordinados, no âmbito das suas competências de comando, no sentido militar da palavra, é distinto do papel e da acção das APM que, no âmbito da legislação que regula a sua atividade vêm, é justo reconhecer, desenvolvendo um vasto e meritório trabalho.

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Em quarto lugar salienta-se que a IM tem uma especificidade própria, consubstanciada na CM, que faz dela uma instituição sem equivalente a nível do Estado, sendo a única a que se exige o cumprimento da sua missão mesmo com o risco do sacrifício máximo daqueles que nela servem. Com efeito, é a CM que permite que se empregue a IM na guerra e também na paz, em situações limite, de elevado risco, com permanente disponibilidade, de forma auto-sustentada e por tempo indeterminado.

A Lei 11/89 de 1 de Junho, Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar (ECM), expressa e fundamenta esta singularidade, a par dos deveres e das restrições aos direitos de cidadania e dos direitos especificamente reconhecidos aos militares, que ao Estado compete garantir.

Tem-se consciência, também, de que o ?direito à carreira? que o EMFAR preceitua, em obediência à letra do próprio ECM vem sendo desvirtuado e adulterado, com profundas consequências para a ?motivação? dos efectivos, para a ?atractividade da carreira militar? e para o ?recrutamento?.

Importa referir ainda que esta realidade poderá atingir por igual outras áreas como as da ?fidelização dos mais novos? e da ?retenção dos mais velhos? o que, a acontecer, colocará problemas acrescidos e graves às FFAA.

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Por último, a ponderação dos mecanismos de nomeação das Chefias Militares, do Regulamento de Disciplina Militar e do Protocolo e posicionamento dos militares à luz das lições aprendidas e da experiência entretanto recolhida, impõe-se como que obrigatória, dadas as especificidades e a natureza dos próprios processos.

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Em conclusão, no quadro traçado e pelas razões apresentadas, afigura-se que muito poderá e deverá ser feito na área da DN e das FFAA, desde logo as coisas certas. E isso estará certamente ao alcance do País, se forem mobilizadas vontades, articulados setores de atividade, coordenadas ações, aproveitadas competências, escolhidos os adequados modos de agir e aplicados os devidos preceitos e métodos da conceção, estudo e planeamento estratégico e militar.

 

Pela nossa parte, a disponibilidade é completa e incondicional.